Da extrema-direita para a esquerda democrática, humanista, solidária e igualitária em apenas 100 dias (Gonçalo Leite)

Todo o mundo é composto de mudança” – já dizia Luís Vaz de Camões num dos seus célebres sonetos. E essa mudança teve início no dia 20 de janeiro de 2021. Às 12h00 em ponto, e cumprindo com o estipulado na vigésima emenda à Constituição dos Estados Unidos da Améria, cessou funções aquela que foi uma das piores administrações de sempre, e tomou posse uma outra administração repleta de propostas de rompimento total com os últimos quatro anos.

O povo norte-americano saiu às ruas em massa, e mesmo a meio de uma crise de saúde pública tão grave, disse presente à festa da democracia que são, inevitavelmente, as eleições. E tão importante quanto dizer presente à democracia, foi dizer sim à humanidade, sim à solidariedade e sim a uma sociedade mais justa e igual. E, assim, foi eleito, com mais de 81 milhões de votos, um recorde na história dos Estados Unidos, Joseph Robinette Biden Jr. O quadragésimo sexto presidente do país com a constituição mais antiga do mundo em uso.

Existem duas vias para se combater a desigualdade dos povos: uma dessas vias é a recusa veemente da população em subordinar-se a um futuro penoso e incerto, expressando nas ruas e nas mesas de voto a sua vontade de mudança. A outra, mais difícil de ser alcançada, é a ação do próprio Estado em prol da coletividade, impedindo que a desigualdade coloque em perigo a sociedade, a democracia e o futuro de uma nação.

Nos Estados Unidos da América existe agora, no lugar de maior poder e destaque do país, alguém que profere estas palavras que agora passo a citar: “Estou a agir no sentido de avançar com a equidade racial para todos os americanos que têm sido desaproveitados e discriminados, deixados para trás por demasiado tempo”.

E ao coro de vozes progressistas que hoje se ergue na terra dos livres, junta-se ainda o presidente Barack Obama que, em reação ao American Rescue Plan, disse: “A aprovação deste Plano faz-nos lembrar como é tão importante votar e como as eleições interessam e contam mesmo. Este é o tipo de progresso que se torna possível quando elegemos líderes para o Governo que se comprometem com o bem-estar das pessoas”.

Os quatro anos de administração Trump serviram para confirmar aquilo que já devia ser um dado adquirido: a direita não conseguiu, não consegue, nem conseguirá que o mercado funcione como um eficaz regulador social. Não podemos esperar que um mercado capitalista, com um foco obsessivo no lucro e uma abstração dos meios que se propõem utilizar para atingir esse fim, tenha qualquer tipo de ética social.

As sociedades que assentem em fundamentos neoliberais são, indubitavelmente, as sociedades com maiores desigualdades e consequentemente maiores registos de violência. E foi isso que aconteceu nos Estados Unidos, tanto no tempo da escravatura em que o papel do Estado era sobreposto pelo poder dos senhores das terras, empurrando para o abismo milhões de americanos escravizados; como nos últimos quatro anos de extrema-direita (o novo paradigma do Partido Republicano), em que o protofascismo saiu da gaveta, precipitando inevitavelmente mais discriminação e desigualdade nos Estados Unidos da América.

No passado dia 30 de abril, Joe Biden e Kamala Harris atingiram a marca de 100 dias da nova administração. Um marco histórico que importa não só festejar, como refletir. Porque estes foram 100 dias de passagem da extrema-direita para a esquerda democrática, humanista, solidária e igualitária de uma nação inteira.

A marca dos 100 dias foi usada, pela primeira vez, durante a administração de Franklin D. Roosevelt. O pai do New Deal, que o criou e implementou, com o objetivo de recuperar e reformar a economia e a sociedade norte-americana após a Grande Depressão. Esta marca temporal assume especial relevância como padrão para medir o progresso e as mudanças operadas por uma nova administração.

E Joe Biden não tinha poucas mudanças para operar. Aliás, foi um dos presidentes dos Estados Unidos que mais trabalhou nos primeiros 100 dias do novo executivo. Em mãos tinha, e em parte ainda tem, uma pandemia violentíssima, uma economia em cacos, milhões de novos desempregados, questões raciais urgentes, e uma herança de imbróglios do seu antecessor para reverter da forma mais célere possível.

No contexto de resposta à pandemia da covid-19, a primeira grande promessa da nova administração era a inoculação de 100 milhões de doses da vacina nos primeiros 100 dias à frente da Casa Branca. Inicialmente, este objetivo era visto pela comunidade como algo ambicioso de mais, e foi inclusivamente alvo de chacota por parte dos republicanos, encabeçados por Donald Trump.

Acontece que, ao contrário do que a maioria dos críticos argumentava e ansiava (de uma forma muito mórbida e com uma grande falta de ética e de patriotismo), a marca das 100 milhões de doses inoculadas foi atingida apenas 58 dias desde o início da nova administração. E a marca das 200 milhões de doses, o dobro do inicialmente previsto, foi atingida uma semana antes dos 100 dias de Joe Biden na casa mais poderosa do mundo.

Não obstante o inegável, e quase milagroso, sucesso dos Estados Unidos na inoculação da sua população, outros desafios impõem-se à nova administração. Existe ainda, uma grande parte do mundo, que não tem acesso a vacinas em quantidades desejáveis.  

Mesmo com esse grande entrave Joe Biden surpreendeu o mundo, quebrou barreiras e preconceitos, e anunciou em público perante todo o mundo que os Estados Unidos da América, o grande epicentro do liberalismo económico e da iniciativa privada, estavam a estudar a possibilidade de suspender os direitos das patentes no domínio das vacinas contra a covid-19. Desta forma, países terceiros teriam a oportunidade de produzir as suas próprias vacinas sem necessitarem de pagar direitos de propriedade intelectual.

Esta tomada de posição da administração Biden-Harris foi notória de uma nova agenda, uma agenda que respeita a humanidade e os mais desfavorecidos. Uma agenda progressista, por um mundo mais igualitário e unido. Uma agenda que coloca acima dos interesses financeiros instalados, os interesses de uma nação, os interesses do mundo.

Afrontar os interesses financeiros dos poderosos da indústria farmacêutica, com o objetivo de proporcionar aos países mais pobres a possibilidade de enfrentarem a pandemia por sua conta e risco e com baixos custos inerentes à inoculação das suas populações é, não só um ato de coragem, como um ato de compaixão e de solidariedade que devem ser bandeiras da esquerda.

No âmbito da imigração, dificilmente Joe Biden conseguirá cumprir todas as suas promessas. Todavia, o presidente dos Estados Unidos no mês de março assinou decretos importantíssimos para reverter algumas situações desumanas potenciadas pela anterior administração. Um desses decretos presidenciais permitiu a criação de uma task-force para identificar famílias separadas na fronteira com o México.

Como já havia dito no início do parágrafo antecedente, cumprir todas as suas promessas no quesito imigração será muito difícil, se não mesmo impossível. Decorre dessa mesma dificuldade que, apesar da reversão de algumas medidas desumanas da antiga administração Trump, a administração Biden não cumpriu o prometido aumento dos limites para refugiados, e a sobrelotação dos abrigos para menores desacompanhados não abonará nada a seu favor.

No que concerne à política externa, são manifestamente explícitas as alterações comparativamente com a administração do republicano Trump. As atitudes infantis e paradoxais do anterior presidente, que deterioraram as relações dos Estados Unidos com os seus mais antigos aliados, foram o principal foco de atenção de Joe Biden e do Secretário de Estado Antony Blinken.

A aliança transatlântica dos Estados Unidos com a Europa é de suma importância para ambas as partes envolvidas. E ouso dizer que para o mundo, num panorama mais abrangente de ideias. Nós, como europeus, pretendemos uma Europa que seja mais independente e autónoma nas suas decisões e opiniões, mas não podemos subestimar o poder e a importância do multilateralismo num mundo cada vez mais conectado e desejoso de cooperação.

Este eixo Europa-EUA tem vindo a ser progressivamente ressuscitado, ferido que ainda está de quatro anos de desprezo de Trump e seus fiéis seguidores. Porém, respira-se hoje um novo ar nas relações entre os dois lados, existindo uma grande margem para acórdãos e debates sobre temas mais sensíveis como defesa, segurança e comércio.

No domínio de outros eixos bilaterais, Joe Biden e a sua administração têm, em comparação com a administração Trump, endurecido o seu discurso para com a Rússia. Em meados de março, o presidente dos Estados Unidos da América, de forma inusitada, acabou mesmo por caracterizar o seu homólogo russo de assassino, e acusá-lo de interferência indevida nas eleições americanas. Para além das tradicionais picardias verbais, os Estados Unidos, alinhados com a Europa, têm vindo a endurecer a sua posição face às ações militares russas em território ucraniano.

Não posso deixar de abordar outra questão de suma importância para o mundo, as alterações climáticas. Mais uma vez, a crítica à administração Trump é inevitável. O desprezo com que o mesmo (des)tratava este problema de todos nós e intergeracional justificou por si só a mobilização sem precedentes dos jovens norte-americanos pela não reeleição de Donald Trump.

Uma das primeiras ações decretadas por Joe Biden, a partir da Resolute Desk, foi precisamente cumprir a sua promessa e reingressar os Estados Unidos no Acordo Climático de Paris. Como parte deste reingresso, a administração Biden comprometeu o país a reduzir os gases de efeito estufa para metade até ao ano de 2030.

A transformação do modelo económico-social reveste-se cada vez mais de maior importância, sendo transversal a todos os países. As consequências climáticas, inevitavelmente, ao acontecerem sob a forma de catástrofes naturais, impactarão mais extensivamente as classes menos favorecidas da sociedade. Sem descurar os impactos, também eles perversos, sobre as classes mais desprotegidas, que um combate intensivo às alterações climáticas poderá produzir no curto prazo.

De maneira a que seja possível alcançar este objetivo no prazo estabelecido, avalizado agora pela nova administração, terá de ser aprovado no Congresso um Pacote de Infraestruturas no montante de 2.3 triliões de dólares. Esse grande Pacote, ainda em discussão acerca dos moldes de aplicação, incidirá maioritariamente sobre investimentos em veículos elétricos e infraestruturas de tecnologia de energia limpa.

Por fim, é crucial analisar os progressos produzidos no que à economia diz respeito. A pandemia da covid-19 deixou bem patente, em praticamente todas as nações, que a retoma seria dolorosa e porventura demorada. Sem embargo às desigualdades já existentes na economia e na sociedade norte-americana, graças à filosofia neoliberal intrínseca ao país, a situação ficou ainda mais preocupante com a crise económica sucedente à crise de saúde pública.

As minhas caras camaradas e os meus caros camaradas, que agora leem este artigo, estarão porventura a refletir sobre o modelo do neoliberalismo e sobre todas as suas falácias. Lamentavelmente, por experiência própria como cobaias da troika no período de governação do anterior governo português, sabemos que em vez de gerar crescimento, algumas políticas neoliberais aumentam a desigualdade, retraem o crescimento económico e colocam em risco o futuro de toda uma geração.

Inevitavelmente, o aumento da desigualdade prejudica estruturalmente o nível e a sustentabilidade do crescimento económico. Mas como um mal nunca vem só, as políticas neoliberais para a economia e para a sociedade chocam também com a agenda da esquerda no quesito orçamental. Uma austeridade orçamental gera custos sociais substanciais, assim como limita a procura e aprofunda os níveis de desemprego.

Depois deste pequeno aparte a que a camarada e o camarada me vão perdoar, retomo para concluir a evolução da economia dos Estados Unidos sob a égide da administração Biden. Mesmo sem o apoio do Partido Republicano, o Plano de Resgate avaliado em 1.9 triliões de dólares já está a ser colocado em prática. E, curiosamente, uma das medidas desse grande Plano de Resgate é a distribuição de cheques pelos cidadãos norte-americanos com o objetivo de promover a procura e estimular o crescimento económico, receita fundamental para a geração de emprego.

E é exatamente graças a essa medida que choca de frente com o neoliberalismo, e a par de um Plano de Vacinação que, como já abordado no decorrer deste artigo, está a correr muito melhor do que o inicialmente previsto, que a economia dos Estados Unidos conseguiu gerar mais de 1.5 milhões de postos de trabalho (recorde absoluto desde que há registo), reduzindo a taxa de desemprego para uns mais controlados 6%. Como termo comparativo, há um ano atrás estava em 14%. Apesar destas notícias excelentes, existem dois temas que ainda preocupam economistas, governantes e população: os níveis de emprego ainda estão abaixo do período pré-pandemia e existe o risco de uma inflação elevada e descontrolada como resultado dos elevados Planos de Resgate à economia norte-americana.

Por todos estes aspetos que abordei no presente artigo, é axiomático dizer que hoje os Estados Unidos da América são um país liderado por uma administração verdadeiramente preocupada com a segurança dos seus concidadãos, com a estabilidade política e social e com a globalização sustentável.

Esta nova administração norte-americana, nos seus primeiros 100 dias de vida, tem primado pela defesa da proteção das minorias, do combate ao racismo (racismo este despoletado ainda mais pelo antecessor de Joe Biden), da democracia, da estabilidade política e social, mas, também, económica. São 100 dias de quebra total com o passado recente, trágico, de uma nação que muito deu ao mundo e muito mais ainda dará.

Não pode haver progresso senão quando a modernização técnica é acompanhada pela redução das formas de dominação hierárquicas e pela redução da desigualdade. É precisamente esse bom combate que tem sido feito pela nova administração Biden-Harris. São 100 dias que alteram completamente o rumo do mundo, para alguns para pior, para mim e para as minhas camaradas e para os meus camaradas certamente para melhor.

Tenhamos todos a coragem que Joe Biden teve para enfrentar os diabos do extremismo e do neoliberalismo, que ameaçam assaltar todas as conquistas sociais e democráticas. E consigamos fazer do nosso mundo, um mundo melhor, mais justo, solidário e progressista.

 

 

Gonçalo Pinto da Costa Leite