Percurso constitucional - Do Estado Novo à Revolução dos Cravos


A Constituição portuguesa de 1933 é considerada a base do Estado Novo, que vigorou de 11 de abril de 1933 a 25 de abril de 1974.

Esta foi elaborada a partir de um primeiro esboço da autoria de Quirino Avelino de Jesus, por um grupo de professores de Direito convidados por António de Oliveira Salazar e por ele diretamente coordenado. Não houve, desta forma, uma Assembleia Constituinte que representasse os verdadeiros interesses dos portugueses.

O projeto foi objeto de apreciação pelo Conselho Político Nacional e publicado na imprensa para discussão pública, ou seja, foi submetido a plebiscito nacional. No entanto, era difícil não ter sido aprovado, uma vez que os votos em branco e as abstenções foram contados como votos a favor.

As mulheres foram autorizadas a votar pela primeira vez em Portugal, mas o ensino médio era um requisito para o sufrágio feminino, enquanto os homens precisavam apenas de ser capazes de ler e escrever.

O referendo constitucional foi realizado em 19 de março de 1933, aprovando a nova constituição por 99,5% dos eleitores.

A Constituição de 1933 organizava-se em apenas duas partes: “Das garantias fundamentais “e “Da organização política do Estado”. A primeira parte subdivide-se em títulos e a segunda parte em títulos e, posteriormente, em capítulos.

Nação portuguesa

Quanto à primeira parte, começa por determinar que a nação portuguesa é composta pelo território português e pelas colónias espalhadas pelo mundo (artigo 1.º).

Cidadãos

O artigo 8.º constitui os direitos e garantias individuais dos cidadãos portugueses, como o direito à vida e integridade pessoal (número 1), a liberdade e a inviolabilidade de crenças e práticas religiosas (número 3), a liberdade de expressão do pensamento sob qualquer forma (número 4), não ser privado da liberdade pessoal nem preso sem culpa formada (número 8), a liberdade de reunião e associação (número 14), entre outros.

Como já neste ponto podemos concluir, estes direitos estavam só consagrados no papel, pois na prática não eram de todo cumpridos. O maior exemplo disto é a PIDE/DGS (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), polícia política do Estado Novo, fundada a 22 de outubro de 1945 e extinta a 24 de novembro de 1959, que foi responsável pela repressão de todas as formas de oposição ao regime político do Estado Novo.

 

Família

No artigo 11.º, a Constituição determina que o Estado assegura a constituição e defesa da família, pois considera que é fonte de conservação e desenvolvimento da raça, “como base primária da educação, da disciplina e harmonia social, e como fundamento de toda a ordem política”.

Já no artigo 12.º, no segundo parágrafo, faz distinção entre os filhos legítimos e ilegítimos: “é garantida aos filhos legítimos a plenitude dos direitos exigidos pela ordem e solidez da família reconhecendo-se aos ilegítimos perfilháveis, mesmo os nascituros, direitos convenientes à sua situação, em especial o de alimentos, mediante investigação acerca das pessoas a quem incumba a obrigação de os prestar”.

Atualmente, estas disposições não fazem qualquer sentido, tendo em conta a evolução da mentalidade da sociedade em relação a este tema.

Corporações morais e económicas

Do artigo 14.º ao 19.º, demonstra-se a característica corporativista do Estado Novo, onde se pretende organizar a comunidade em grupos de trabalho ou de lazer. Tudo para que as pessoas estejam ocupadas e tenham pouco tempo para pensarem em estratégias de oposição ao regime.

Relações do Estado com a Igreja Católica e demais cultos

A Constituição define, no artigo 45.º, que todas as religiões são aceites e “é livre o culto público ou particular de todas as religiões”, mas depois abre uma exceção aos “atos de culto incompatíveis com a vida e integridade física da pessoa humana e com os bons costumes.”

Aqui podemos observar o tradicionalismo e conservadorismo deste regime, pois diz que todas as religiões são aceites, menos aquelas que praticarem atos de culto que não sejam compatíveis com os bons costumes da sociedade e do regime. Isto é, de uma forma clara, oprimir as religiões que não se enquadrem no estigma social da época.

Defesa nacional

O Estado Novo deu muita importância à organização militar, e por isso estabeleceu que o serviço militar é geral e obrigatório (artigo 54.º) e que o Estado promove e protege instituições civis que tenham por fim disciplinar a mocidade (artigo 56.º), que era uma organização juvenil, destinada a «estimular o desenvolvimento integral da sua capacidade física, a formação do carácter e a devoção à Pátria, no sentimento da ordem, no gosto da disciplina e no culto do dever militar.» (artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 26611, de 19 de maio de 1936).



O 1º momento de oposição ao regime deu-se nas eleições legislativas antecipadas (para a Assembleia da República) em 1945. Deveriam ser “mais livres que as de Inglaterra” – para o regime salazarista recuperar credibilidade.

Cria-se o MUD (Movimento Unidade Democrática) – oposição democrática, que reúne 50 000 assinaturas e concorre às eleições, contra a União Nacional, liderada por Salazar. Exigiram: adiar as eleições – para os partidos políticos se organizarem melhor; cadernos eleitorais revistos e atualizados – para prevenir fraudes; e garantir liberdade de expressão e opinião.

Tinham como objetivo concorrer nas mesmas condições que a União Nacional (partido único), mas as exigências não foram respeitadas. No entanto, desistem à última da hora, como forma de protesto e divulgação do sucedido.


O 2º momento de oposição ao regime ocorreu nas eleições presidenciais de 1949. O candidato da oposição foi Norton de Matos contra Óscar Carmona (já presidente desde 1928 – apoiante fiel do regime e controlado por Salazar). Porém, desiste também nas vésperas das eleições, face a uma severa repressão, com o mesmo objetivo do MUD.

 

 

 


O 3º momento de oposição ao regime desenrolou-se nas eleições presidenciais de 1958, onde o candidato da oposição era Humberto Delgado (general da Força Aérea, carreira diplomática, representou Portugal na NATO) contra o general Américo Tomás (candidato da União Nacional, controlado por Salazar e fiel ao regime).

Não desistiu e exprimiu diretamente em período de campanha que demitia Salazar caso ganhasse. No entanto, Américo Tomás ganha, por resultado de eleições fraudulentas: oficialmente, cerca de 70% dos votos eram a favor do almirante, quando na verdade Humberto Delgado teve a maioria dos votos.

Delgado exila-se no Brasil e Argélia, onde organizou conspirações para golpes de Estado contra ambas as ditaduras da Península Ibérica. É assassinado em 1965 pela PIDE. Salazar, sentindo a credibilidade das eleições e do regime abaladas, anula o sistema de sufrágio direto, passando o chefe de Estado a ser eleito por um colégio eleitoral restrito. A oposição ao regime cresce brutalmente, especialmente entre 1959 e 1962.


Um 4º momento de oposição ao regime efetuou-se no rescaldo das eleições: o bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, escreve uma carta pública a Salazar, onde denuncia as condições de vida da população e critica o regime. É condenado ao exílio durante 10 anos (o que demonstra a sobreposição do Estado à Igreja, contrariando os princípios laicos da Constituição), mas inspirou um grupo crescente de católicos a criticar o Estado Novo.

 

 

 

 

 


Conseguimos perceber com base nestas revoltas que a população portuguesa já não suportava a ditadura. Entre outras oposições, o descontentamento geral aumenta a todo o gás. Para agravar a situação, a guerra colonial inicia-se em 1961 (e durou até 1974) e o país é isolado internacionalmente, sofrendo de uma série de críticas e condenações públicas, sanções económico-financeiras e diplomáticas de forma a levar Portugal a descolonizar.

 


Em 1968, Salazar sofre de um acidente e Américo Tomás, presidente da República na altura, nomeia Marcello Caetano para chefe de governo, em setembro de 1968. Nos primeiros meses de mandato, o Governo dá sinais de abertura, ficando este período conhecido por Primavera Marcelista. No entanto, nas eleições legislativas de 1969, o ato eleitoral saldou-se por uma série de atropelos aos princípios democráticos, resultando em 100% dos votos para a Ação Nacional Popular e 0% para a oposição.

 


No início dos anos 70, a Guerra Colonial já pesava sobre o exército, levando à criação do Movimento das Forças Armadas (MFA). Planearam um golpe militar que, restaurando as liberdades cívicas, solucionasse o problema colonial. Depois de uma tentativa de liberalização falhada, o “Golpe das Caldas” (março), o MFA preparou minuciosamente a operação militar que pôs fim ao Estado Novo a 25 de abril de 1974.

 

 

 

 

 


Junto ao Terreiro do Paço, o destacamento da Escola Prática de Cavalaria de Santarém, chefiada pelo capitão Salgueiro Maia, deparou-se com uma coluna de tanques do Regimento de Cavalaria 7, que saiu em defesa do Regime. Valeu o sangue frio de Maia que corajosamente decidiu debater com o inimigo em vez de abrir fogo. Coube também ao jovem capitão dirigir o cerco ao Quartel do Carmo, onde se tinha refugiado o presidente do Conselho e outros membros do Governo. A resistência do quartel terminou ao final da tarde do dia 25 de abril, quando Marcelo Caetano se rendeu, dignamente ao general Spínola. No fim do dia, o Movimento dos Capitães sagrava-se então vitorioso.


Contra todas as ordens e pedidos dos revolucionários, a população acorrera às ruas em apoio aos militares, a quem distribuía cravos vermelhos. Praticamente só a polícia política resistia ainda, sendo que foi esta que provocou os únicos 4 mortos da “Revolução dos Cravos”.

 

 


O Processo Revolucionário em Curso (PREC) foi um período de grande instabilidade política, social, ideológica e económica, que se estendeu de abril de 1974 a abril de 1976.

 

 

 

 


Após a “Revolução dos Cravos”, o MFA comprometeu-se a passar o poder para as mãos dos civis, definindo o prazo máximo de um ano para a realização de eleições constituintes. Realizadas a 25 de abril de 1975, os resultados sagram o PS vencedor, com 38% dos votos.

Os trabalhos para elaborar uma nova Constituição começaram a decorrer em junho de 1975 na Assembleia Constituinte, em ambiente pós-revolucionário. Apesar de eleitos democraticamente, os deputados não possuíam total liberdade de decisão. Como condição para que se realizassem as eleições, o MFA impusera aos partidos concorrentes a assinatura de um compromisso que preservava as conquistas revolucionárias – Primeiro Pacto MFA-Partidos – posteriormente foi substituído por um 2º pacto mais moderado, mas igualmente condicionador da capacidade legislativa da Constituinte.


A Constituição via-se obrigada a: reiterar a via de “transição para o socialismo”, considerar “irreversíveis” as nacionalizações e as expropriações de terras efetuadas, manter como órgão de soberania o Conselho da Revolução, considerado garante do processo revolucionário, definir Portugal como um “Estado democrático”, reconhecer o pluralismo partidário, conferir a todos os cidadãos “a mesma dignidade social” (opção liberalizante reforçada pela adoção dos princípios da Declaração Universal do Direitos do Homem), concessão da autonomia política às regiões insulares e instituição de um modelo de poder local descentralizado e eleito por via direta.

A nova constituição foi aprovada a 2 de abril de 1976 por todos os partidos exceto o CDS, e entrou em vigor a 25 de abril de 1976, exatamente 2 anos após a “Revolução dos Cravos”. Apesar de todas as críticas e alterações de que foi alvo, a Constituição de 1976 foi, sem dúvida, o documento fundador da democracia portuguesa. Ainda hoje se encontra em vigor, com 7 revisões constitucionais.

Esta Constituição é constituída por quatro partes: “Direitos e deveres fundamentais”, “Organização económica”, “Organização do poder político” e “Garantia e revisão da Constituição”. Mais uma vez, estas partes dividem-se em títulos e, posteriormente, em capítulos.

Território

O artigo 5.º estabelece que Portugal abrange “o território historicamente definido no continente europeu e os Arquipélagos dos Açores e da Madeira”, passando todas as antigas colónias a serem independentes.

Sufrágio universal e Partidos políticos

O artigo 10.º define que as eleições são universais, iguais, diretas, secretas e periódicas, e reconhece o pluripartidarismo. Neste tema, é relevante olhar também para o artigo 46.º, número 4, que proíbe associações armadas e organizações racistas e fascistas.

Direitos, liberdades e garantias

Toda a Parte I fala sobre direitos e deveres fundamentais, onde se incluem: direito de resistência (artigo 21.º); direito à vida e integridade pessoal (artigo 24.º e 25.º, respetivamente); direito à liberdade e à segurança (artigo 27.º); habeas corpus, uma ação de proteção da liberdade de locomoção dos indivíduos, que serve para fazer parar ou prevenir qualquer restrição ilegal ao direito de circular livremente, ou seja, prisões ilegais (artigo 31.º); família, casamento e filiação (artigo 36.º); liberdade de expressão e informação (artigo 37.º); liberdade de consciência, religião e de culto (artigo 41.º); direito de reunião e de manifestação e liberdade de associação (artigo 45.º e 46.º, respetivamente).

Trabalho

São ainda relevantes os artigos 55.º, liberdade sindical; 57.º, direito à greve e proibição do lock-out; 59.º, direito dos trabalhadores.

Direitos e deveres sociais

Nesta matéria, a Constituição prevê a segurança social e solidariedade no artigo 63.º; a saúde no artigo 64.º; habitação no artigo 65.º; ambiente e qualidade de vida no artigo 66.º.

 

 

Direitos e deveres culturais

Quanto à cultura, é importante referir o artigo 73.º, relativo à educação, cultura e ciência; 74.º e 75.º, referentes ao ensino (público, particular e cooperativo); e o 76.º, alusivo à universidade e acesso ao ensino superior.

Religião

O artigo 41.º precisa que o Estado é laico (a Igreja e as comunidades religiosas não têm interferência na atividade do Estado, são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto). Por último, o artigo 43.º, número 2 estipula a não programação da educação e cultura de acordo com quaisquer “diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”.

Defesa nacional

Em contraposição com a Constituição de 1933, a atual determina no artigo 276.º que o serviço militar tanto pode ser voluntário como obrigatório, tendo em conta a regulação por lei, que fixa a forma, natureza e conteúdo da prestação.

Finalizando, são notórias as diferenças entre as duas Constituições, tanto pelo contexto histórico como pelo seu conteúdo. Passamos de uma Constituição que não representava os valores democráticos e característicos de um Estado de Direito, para outra que defende com vigor os verdadeiros valores de uma República representativa, democrática e social.



Inês  Cardoso