A morte de Marcelino da Mata e as discussões que se seguiram em praça pública portuguesa relevaram a importância de um assunto pouco abordado desde a revolução de abril, a guerra colonial. O que se seguiu em redor do defunto veterano foi uma dicotomia entre dois pilares.
Uns argumentaram que devíamos compreender
o nosso passado imperial de forma depreciativa, outros como evidência de uma
retórica arcaica de um excecionalismo nacional. Não obstante argumentos mais ponderados
e com mais conhecimento que também envolveram o debate, estes tiveram tendência
a ser relegados a favor do espetáculo mediático que interessava entre os dois
extremos. Creio, contudo, que a principal preocupação deste episódio deve ser a
aparente falta de conhecimento e de um debate nacional sobre a guerra e as suas
implicações para a identidade do país, para a democracia, e até para as
formações sociais e políticas de muitos membros da sociedade. O texto
pretende, meramente, apontar uns pontos e sublinhar alguns aspetos sobre este
assunto.
Primeiro, é preciso ter em mente a
importância do “império” sobre a história de Portugal.
Basta lembrar que quando se deu o
episódio do mapa cor-de-rosa os estudantes de Lisboa trajaram a estátua de
Camões com as suas capas negras, porque a pátria estava de luto. A base do próprio
hino nacional terminava antigamente “contra os bretões marchar”, pela mesma
razão. Foi pelas colónias africanas que entrámos na primeira guerra mundial,
para assegurar que as mantínhamos de agressões alemãs ou tratados entre a
França e a Inglaterra.
Por outras palavras, a manutenção do nosso
património colonial esteve sempre ligado à soberania e ideia do país, muito antes
de Salazar. Era parte da narrativa nacional, especialmente no fim do século 19.
Portugal era ainda um país de relevo porque estava entre os pares da Europa que
enveredavam pela colonização.
Da mesma forma que mesmo antes do século
19, antes do início da colonização efetiva de África, a herança dos
descobrimentos portugueses pesava na imaginação de todos no país. Era uma prova
da capacidade de um povo, era a razão da nossa fé em nós próprios e a semente
da nossa confiança. Não creio que se possa dizer que tal foi feito com
intenção, antes fruto dos esforços e dos sacrifícios que até aí tinham sido infligidos
em nome da posição de Portugal no mundo. É importante também notar que em
grande medida a criação de impérios era a prática histórica para muitos povos
no mundo até então, não só os europeus.
O Estado Novo não contrapôs esta narrativa.
Salazar fundiu duas vertentes da
mentalidade nacional, que foram em grande parte razão pelas
décadas de poder deste regime. Capturou a ideia de que as “coisas estavam
mal”, e que só o seu nacionalismo conservador, com toques fascistas,
poderia resolver. Era uma resposta que utilizou o nacionalismo e a retórica
do excecionalismo português em conjunto com o conhecido discurso do Portugal
pobre que não pode mais.
Utilizou a história de Portugal, incluindo
a narrativa imperial, para legitimar o regime.
O Estado Novo perduraria enquanto garantisse que agia em nome de uma história que
os portugueses em grande medida concordavam. Viam que o país estava em
dificuldades, que se perdia o prestígio, e Salazar oferecia-se como salvador.
Este discurso é perigosamente prevalente nos dias de hoje também, demonstrando
o risco que é um povo desacreditado em si mesmo.
A essência das colónias africanas também
pouco mudara entre o liberalismo, a república e o Estado Novo. O Estado Novo
trouxe o ato colonial, a formalização do indigenato, esse formato de trabalho
forçado das populações africanas. Contudo já existia uma divisão entre uma
elite branca, com poucos assimilados negros, e plantações que aludiam ao
passado escravo das plantações do Brasil.
Não se deve simplificar as coisas, pois
nem todos os portugueses se comportavam como senhorios medievais, utilizando
palmatórias para disciplina, ou tratando as populações negras como escravos, embora
muitos vivessem assim. Alguns iam para África para melhorarem a sua vida,
procurando a riqueza que faltava no país. Outros iam para trabalhar para a administração
pública que, para além de algumas cidades, pouco controlavam do que acontecia
nos remotos postos das colónias. Outros ainda iam trabalhar para as grandes
empresas que dominavam a atividade económica. Alguns iam com laivos de missões
civilizadoras, uns bem-intencionados, outros para ganhar dinheiro.
Os propósitos pouco mudam ao longo da
história, as práticas e intenções sim. O importante para o Estado Novo era
manter o status quo, tanto nas
colónias como em Portugal, pois modernizar ou desenvolver demais poderia
incutir custos demasiado altos para a sobrevivência do regime.
Claro que nem todos na elite concordavam
com esta visão, uns querendo a descolonização como Ministro Botelho Moniz,
outros, como Ministro Adriano Moreira, acreditando que podiam reformar o
sistema, acabando por abandonar esta tentativa e contestar Salazar por não atuar
nesse sentido. Vale a pena realçar que muitos foram os que tentaram mudar as
coisas de cima, acabando vítimas do regime, como o General Humberto Delgado.
Não admira que a guerra colonial tenha
começado com movimentos de libertação do trabalho forçado a que muitos estavam sujeitos,
alastrando-se a partir daí. Nesta guerra houve medidas de intenção de desenvolvimento
das colónias, houve ações de aproximação das populações, tal como o General
Spínola fez na Guiné. Houve operações militares da mais variada natureza,
muitos antevendo os conflitos que viriam a ver-se no Vietnam. O mesmo General
Spínola profeticamente disse quando tomou posse das operações militares da Guiné
que uma guerra de subversão não se ganha militarmente, impede-se a derrota
militar até que a solução política seja encontrada. Esta não foi encontrada
até ao regime cair.
No percurso desta guerra unidades de
operações militares foram desenvolvidas e formadas para o combate subversivo. A
guerra há muito que não se equiparava às linhas organizadas dos combates do
século 18 entre cavalheiros que deixavam os seus soldados morrer. Bombas,
armadilhas, emboscadas, terror, tudo se viu nesta guerra do século 20. Mortes
horrendas e momentos de terror difíceis para a compreensão humana. Isto
registou-se dos dois lados. Militares Portugueses participaram em ataques de
brutalidade inimaginável, e guerrilheiros libertadores também. Alguns portugueses
lutaram a favor da libertação operando do lado dos guerrilheiros. E, também,
membros da população africana operavam do lado português, como soldados ou
membros da administração, alguns destes procurando posição, subsistência ou a
prometida paridade que nunca se realizou, muitos também sem grande escolha.
E quem eram estes combatentes? Creio que o
momento mais revelador deste conflito tenha sido a tentativa do regime
salazarista de legitimar as colónias enviando colonos portugueses para África
para colonatos como o Limpopo. Foi aqui que se percebeu as diferenças de
Portugal e de África. Os portugueses também podiam ser pobres, analfabetos, e
os africanos literatos e mais educados do que muitos dos seus supostos
superiores. Revela-se aqui também os que viriam a ser os oficias e soldados que
fariam o 25 de Abril. Muitos se lembram dos soldados portugueses que vinham
do interior do país diretamente para combater em África. Pouco conheciam do
mundo, pouco tinham estudado, mas iam lutar por Portugal, com pouco equipamento
e muita incapacidade humana. Isto disse Salgueiro Maia, um conhecido veterano
da guerra colonial, como a maioria dos seus camaradas de armas que fizeram a
revolução. Alguns oficiais eram estudantes, outros com alguns estudos, outros
oficiais de carreira. Alguns eram idealistas e acreditavam no combate, outros
iam por serviços, muitos iam sem escolha. Muitos mais ‘afortunados’ escapavam
ao serviço em Portugal, outros fugiam do país. Importa aqui notar que haviam
‘hierarquias’ em Portugal, tal como em África, embora doutra natureza. Esta
hierarquia definia muito do corpo militar português. Contudo, foram os soldados
que fizeram o 25 de Abril, os mesmos que tinham visto e atuados em cenários de
guerra difíceis de compreender.
O 25 de Abril como se sabe trouxe uma
descolonização tardia, apressada, com muitos retornados, e com as conhecidas polémicas.
Muitos vieram de lá revoltados com o que perderam, do esforço que levaram a
cabo durante a sua vida. Em Portugal
muitos respiravam de alívio por não terem de enviar mais filhos para uma a
guerra num “Portugal” desconhecido e distante. Respirava-se também de alívio
pelo fim do regime, com exceção de alguma elite económica cujo o futuro incerto
os deixava apreensivos. Alguns queriam a ditadura comunista, outros a
democracia. O palco estava preparado para a democracia que se seguiria e as
divisões do país que conhecemos. Por África, Portugal retirava-se, abandonando
os que tinham por ela lutado ou dependido, dando lugar ao conflito local pelo
poder.
Fica a questão, e o império, esse
monumento que tanto sangue, suor e lagrimas Portugal deu para edificar, e
depois perder. Ficaram as memórias, algumas mais retóricas do que factos, ao
estilo do século 19. O “antigamente é que eramos grandes”, mais marcado pelo
desespero dos problemas dos dias de hoje do que pelo conhecimento do passado.
Faltou a discussão. Faltou
entender o que muitos passaram. Faltou compreender as ideias que
perdurarão do passado e ainda hoje marcam a imagem de muitos sobre país. Faltou
compreendermo-nos uns aos outros como portugueses e pelo que tínhamos passado.
Sobre a história, temos o dever como
membros de uma democracia de entender o que é que, em nome do nosso país, foi
feito, tanto para o bem como para o mal. Portugal foi pioneiro do fim da
escravatura, mas isso não apaga a própria escravatura. Portugal lutou na guerra
colonial, mas o desaparecimento das colónias não apaga essa memória, nem em
África nem em Portugal.
Como devemos então entender o nosso
passado, essa pergunta que assombra o ocidente. Acho que temos que ter em mente
alguns pontos básicos de humildade humana.
Um, devemos evitar julgamentos morais.
Nós não passámos pelo que os nossos avós
ou país passaram. Não temos que concordar com eles, mas devemos evitar ser
arrogantes e assumir superioridades morais que não competem ao ser humano. É
difícil compreender o passado, é mais difícil admitir que os erros são humanos
e não de “pessoas más”. Só pessoas. O que um ser humano faz, outro nas mesmas
circunstâncias poderia repetir, uma noção difícil de se assumir. A história
é, acima de tudo, um exercício de humildade, e deve, até certo ponto, ser
compreendida à luz da época. É essencial entender-se que as pessoas pensavam de
maneira diferente, tal como nós pensamos de maneira diferente, e as gerações
futuras também. Não podemos também deixar que a história seja politizada nos
dias de hoje, criando a noção de permissibilidade para alguns reivindicarem
para eles a patente de defensores da história.
A história não pertence a ninguém, é de
todos.
Sobre o nosso passado, temos que recordar
tudo. Um povo aprende com a sua história, porque nela entende-se a evolução da sua
sociedade. Somos porque passámos por muito e aprendemos muito. Não temos que
ter medo de enaltecer com algum orgulho o nosso passado. Fizemos grandes
feitos, não obstante o fosso entre os nossos princípios de hoje e de então. Os
valores do passado não têm influencia sobre nós. Temos de preservar esta
memória, e se algo podemos retirar dela como um país, é que a força que os
portugueses tiveram no passado também têm hoje. Não desapareceu. Precisamos
de ter confiança em nós próprios para enfrentar os nossos desafios atuais, à
luz dos valores democráticos que temos. O que muda com o tempo são os
princípios e os valores que temos. A confiança em nós deve-nos dar força para
enfrentar o mesmo passado, reconhecendo, sem julgar por absoluto, à luz de
hoje. Rejubilar o quanto mudámos, e o quanto ainda podemos mudar.
Escrevi este texto porque 60 anos passados
do início da guerra creio ser essencial compreender um aspeto relevante fulcral
da democracia, o papel das ideias, especificamente na nossa história. Na
identidade de uma pessoa, povo, país, não compreender a evolução das ideias, é
um mau serviço para com a democracia.
Os militares de abril deram-nos a
democracia. Para honrar o seu sacrifício temos que compreender
bem o que implica viver em democracia, viver com os outros, no âmbito de
Portugal e da sua história. Implica saber bem quem somos e o porquê, só assim sabendo
o porquê do percurso que seguimos.