Sem mediação não há democracia. A democracia representativa assenta neste princípio, na medida em que nós, cidadãos, enquanto colectivo, delegamos em representantes eleitos o poder de por nós decidir. E não é por acaso que assim acontece na generalidade das sociedades em que o ideal democrático medrou e se instituiu com solidez. É que a “democracia directa”, sempre invocada por populistas através de frases como “têm medo de ouvir o povo”, por simplificar questões eminentemente complexas, faz depender o destino de todos de idiossincrasias pessoais e posicionamentos emocionais de cada um, tantas vezes influenciados por amplas campanhas de desinformação assente em dados falsos. Estamos, hoje, perante uma hipervalorização da subjectividade em detrimento da evidência científica ou factual, em que se julga que a opinião de cada um se reveste de particular validade e pode constituir como que uma “verdade” à la carte. Daí que se afigure vital o papel do jornalismo para a saúde de uma democracia, sendo que o retrato que se pode traçar a partir dos debates presidenciais não é especialmente abonatório.
Aquilo a que temos assistido nos debates televisivos e
em painéis de comentadores, tem sido verdadeiramente lamentável e aponta-nos
para a conclusão de que, se o jornalismo está em decadência, então os
jornalistas (televisivos) são os seus coveiros. A manutenção de André Ventura
como elefante na sala, omnipresente em todos os debates, até quando o próprio
não está presente, insere-se num processo continuado, que já vem longo, de
hipérbole de todo e qualquer incidente que envolva o candidato. Para quem, como
Ventura, assenta em superficial vacuidade, fica a dever aos media uma
notoriedade que excede claramente a sua expressão eleitoral. Em debates de 30
minutos é incompreensível o tempo dispensado, no debate entre Marisa Matias e
Ana Gomes, a falar do líder do Chega. A insistência da jornalista no tema é a
insistência na superficialidade, no quem ganha e quem perde debates, nas
pontuações de candidatos, nas percentagens de sondagens, que em nada contribui
para o cabal esclarecimento dos cidadãos sobre as propostas políticas dos
candidatos. E o debate em causa, de antemão aparentemente pouco prometedor por
se tratarem de candidatas que concorrem pelo mesmo eleitorado, revelou-se
surpreendentemente interessante, não tanto por divergências vincadas no que
respeita o posicionamento político das candidatas, necessariamente artificiais,
mas por uma serenidade, eloquência e domínio dos temas por parte de Ana Gomes
que conseguiu, liberta de assuntos como a corrupção em que o seu registo é
habitualmente trauliteiro, trazer novos temas a terreiro e dar a conhecer mais
do seu pensamento, evidentemente informado, sobre diplomacia, o papel de
Portugal na UE, segurança e defesa. A esquerda deve ter voz sobre estes temas,
não permitindo que a direita se assenhoreie deles.
Já a estratégia de Marcelo Rebelo de Sousa em nada
destoa do estilo redondo em que exerceu o seu mandato, ainda que não deixe de
ser bizarro ver Marcelo de acordo com todos os posicionamentos políticos
assumidos por candidatos de esquerda como Marisa Matias ou João Ferreira. Deste
modo, esvazia os debates de qualquer clivagem política, que naturalmente
existe, uma vez que o que distingue esquerda e direita não é o ensejo de acabar
com a pobreza e a desigualdade, mas o caminho para lá chegar. Portanto, esta
recusa de Marcelo Rebelo de Sousa se posicionar politicamente, funcionando como
medicamento genérico para qualquer maleita, numa tentativa de abranger a maior
franja de eleitorado possível, esvazia o debate político daquilo que ele
verdadeiramente deve ser: o confronto de ideias divergentes com o intuito de
clarificar posições.
Aguardava com alguma expectativa o debate de Vitorino
Silva e André Ventura, ambos oráculos do vox populi. Evidentemente que não é
com agrado que vejo a simplificação primária com que Vitorino Silva trata a
generalidade dos temas políticos – sempre sem ideologia, daí advém o perigo,
ainda que resultante do posicionamento “naïve” do candidato – mas, desde o
anúncio da sua recandidatura, que julguei ler nela uma vontade de combate ao
populismo de Ventura. Mal estávamos se Vitorino Silva fosse o último bastião da
revolução de Abril, mas não deixa de ser de apreciar o intento. O interesse do
debate estaria, a meu ver, em perceber se “o que se diz à mesa do café” se
resumia ao discurso de Ventura, ou se existia algo mais, temperado por algum
sentido de fraternidade. E pude concluir que efectivamente sim, existe, e
talvez tenha sido esse o aspecto mais conseguido do debate. É que, perante o
argumentário abjecto de Ventura, Vitorino contrapunha ideias simples
(simplistas até), mas que, certamente, ressoavam em quem as ouviu como
verdadeiras e até revestidas do mais maturado bom senso. Ainda que acredite que
o combate ao populismo de extrema direita não se faz sem inteligência e
densidade de pensamento, não deixa de ser revelador que quatro pedrinhas apenas
tenham sido o bastante para colocar em causa um discurso odioso que se quer
fazer crer ser partilhado por muitos.
5 de janeiro 2021
Hugo Mendonça