A 25 de abril de 1976 entrava em vigor a mais recente Constituição da República Portuguesa. Após os anos de grande instabilidade do PREC pós 25 de abril, a redação deste documento acabou por assegurar a continuidade futura da recente estabilidade no regime democrático. Sabemos que para que se concretize a “vontade do povo” é essencial em democracia uma legislação exaustiva que promova a transparência das ações da classe política e que previna a implementação de políticas contrárias ao interesse popular. Nesta medida a constituição de 1976 não foge à regra e é até hoje a mais longa e detalhada constituição do estado português.
Quando hoje abordamos a constitucionalidade de
partidos da atual “Direita Radical”, existem dois artigos redigidos ainda no
primeiro manuscrito do texto constitucional e que sobreviveram às sete revisões
constitucionais - o artigo 46 nº 4 que proíbe organizações e comportamentos
racistas ou xenófobos e o artigo 10 nº 2 que aborda o conceito de democracia
política - que condenam associações partidárias de caracter autoritário e
segregacionista. Podemos assim concluir que o estado português sempre se
demarcou formalmente de atribuir qualquer tipo de poder político a este tipo de
movimentos com a premissa de que o utilizariam para atentar ao regime
democrático.
Ainda que assim seja, constatamos na prática esse
filtro de separação de políticas partidárias constitucionais de
inconstitucionais não tem funcionado visto que durante a Terceira Republica discurso
abjeto aos valores democráticos e às vezes próprios valores de civilidade
emergiu sem qualquer restrição em vários partidos: O MRPP em 2015 na campanha
eleitoral para as legislativas clamava “Morte aos Traidores”, o PNR tem uma
agenda de extrema-direita protofascista assumida e ainda dessa lista destaca-se
o CHEGA, partido que em dois anos de atividade conseguiu já grandes façanhas
como o desenvolvimento de um projeto de revisão constitucional que prevê a
castração física de pedófilos, defender planos de confinamento da etnia cigana
e fazer propostas de alteração do regime semi-presidencialista português para
um presidencialista, tendo esse último no passado conduzido à ditadura em
Portugal.
Dado a inconstitucionalidade do partido ser então
objetiva e não uma questão em que se possa perspectivar, deparamo-nos com uma
questão: Qual o motivo de partidos como o CHEGA serem e continuarem
legalizados? No que toca ao maior partido de extrema-direita atualmente em
Portugal, noto que aquando da sua legalizalização em abril de 2019 o programa
partidário apresentado perante o tribunal constitucional não era de todo o
mesmo que hoje se verifica. O partido admitia inclusive ter como fim “a defesa
da democracia política, económica e cultural” e apresentando como um princípio
basilar a “Rejeição clara e assertiva de todas as formas de racismo, xenofobia
e de qualquer forma de discriminação contrária aos valores fundamentais
constantes da Declaração Universal dos Direitos do Homem”. É clara a tremenda
discrepância entre o programa com aprovação do tribunal constitucional e o
atual programa em que o carácter racista e anti-democrático do partido é
evidente. É assim também claro aos meus olhos que a legalização do CHEGA
resultou pura e simplesmente de um esquema perverso de falta de integridade
ideológica por parte do partido que ainda permanece noutras situações.
Hoje, quando abordo o argumentário da maior parte dos
que defendem a manutenção do estatuto legal destes partidos na maioria das
vezes não lhe deteto um mínimo de plausividade. Uma tese frequente nomeadamente
é sugerir que a legalização de um partido é algum atentado à liberdade de
expressão dos seus integrantes. Bem, parece-me risível que num estado
democrático em que a liberdade é um fundamento basilar alguém alegue que o
cumprimento da constituição ponha em causa a liberdade de expressão. Os tempos
da censura já vão longe e a única questão que está em causa com a ilegalização
do partido é atribuir-lhe ou não poder político, que neste caso serviria apenas
para agendas danosas ao regime democrático.
Para além disso muitos também tratam a ilegalização
como um impeditivo a que decorra o combate ideológico de recaptação do
eleitorado destes partidos alegando que o “debate” não é possível. Indo por
partes, em primeiro lugar o combate à extrema-direita tem apenas sustentação em
dois pontos-chave: O reforço da cultura e educação na vida dos cidadãos,
estimulando o pensamento crítico abordando inclusive os perigos destas
ideologias e na apresentação de soluções políticas que dêem resposta aos
problemas da população e que não a façam desacreditar no sistema. Ambos podem
ser realizados perfeitamente cumprindo o texto constitucional. Em segundo
lugar, o debate nunca foi um recurso com mínima validade para enfrentar a extrema-direita.
A função do debate é encontrar falhas na argumentaria dos candidatos de modo a
permitir uma reflexão mais ponderada por parte dos eleitores. Ora, os eleitores
do CHEGA são tudo menos ponderados: É um eleitorado marcado pelo sectarismo e
um ignorante apreço por populismo que acaba o próprio por ser exaltado quando o
seu candidato quebrou todas as regras de civismo porque deve bastar gritar mais
alto.
Na minha humilde opinião, creio que nunca deveria ter
sido admitido no espaço democrático um partido que quer destruir a democracia.
Esta tem regras e é um erro entender que a exclusão de certos partidos do
sistema democrático que deliberadamente não as respeitam é qualquer tipo de
atentado aos seus direitos. A ascensão da extrema-direita representou um
retrocesso civilizacional grave em que o sistema muito perdeu e continua a
perder e temos hoje mais do que nunca travar estes fenómenos com métodos
eficazes. A promessa da candidata presidencial Ana Gomes de promover uma
reapreciação por parte do Tribunal Constitucional da legitimidade do partido é
como discurso um caminho: Um caminho de estabelecimento de uma oposição fixa
que não cede à ingenuidade de pensar que se pode de alguma forma conversar com
a extrema direita e que a podemos tolerar pois ela não nos tolera a nós e não
olhará a meios para retirar os nossos direitos, a nossa liberdade e tudo aquilo
de abril construiu.
26 janeiro
Diogo Bento