Nos últimos dias, o projeto europeu, sobretudo nos seus
moldes atuais, tem estado debaixo de fogo devido à resposta dada no combate à
pandemia. Depois do mesmo já ter acontecido na resposta económica, com vários estados-membros
a mostrarem-se alheados do espírito de solidariedade no que toca ao Plano von
der Leyen, agora é na questão da vacinação que tudo parece voltar a correr não
só pessimamente como sobretudo ao contrário daquilo que deve ser um projeto de
cooperação entre povos e estados. Mas, no meio desta trapalhada, há outro sinal
igualmente grave dado pela UE noutra matéria: o mais recente acordo entre a
União e a Mercosul.
Em Junho de 2019, a União Europeia e a Mercosul – bloco
constituído por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai – assinaram um tratado
que, a ser ratificado, representará o maior acordo de livre comércio da
História de ambos os blocos. Esse acordo, no entanto, promete ser devastador em
termos de impacto ambiental, uma ameaça para vários povos, nomeadamente
comunidades indígenas, e fortalecimento do poder e dos interesses quer de
grandes corporações e grupos económicos quer de regimes nefastos para a
democracia.
O principal problema deste acordo aparenta ser o impacto
ambiental. A maioria das exportações da Mercosul vêm da Amazónia e são, em
grande parte, resultado de agropecuária intensiva e outras práticas que
promovem a desflorestação, chuvas ácidas ou largas emissões de gases poluentes.
No caso da desflorestação, 80% da mesma é provocada pela produção de gado
bovino, e este acordo pode ser visto como mais uma oportunidade de mercado para
a carne brasileira, particularmente porque a UE é o segundo maior parceiro de
negócio do Brasil. À carne junta-se também a produção de açúcar e de etanol.
Para além disso, a esmagadora maioria da Amazónia pertence ao Brasil, que neste
momento está nas mãos de um governo negacionista no que toca às alterações
climáticas, que tem feito aumentar a destruição da floresta e que, pelo
contrário, tem sido extremamente leniente no que toca à punição da destruição
ilegal da Amazónia, sendo que, com uma lógica economicamente ultraliberal, não
teria dúvidas em exponenciar essa destruição se isso trouxer frutos a curto
prazo no crescimento económico.
Os líderes europeus defendem que o acordo “não compromete os
objetivos do Acordo de Paris” e “tem regras estritas que visam o combate à
desflorestação”, mas mais de 600 cientistas já disseram que isso não será
possível nestes moldes, aos quais se juntou o desagrado de duas organizações
indígenas, bem como vários analistas que “consideram o acordo pouco firme nessa
matéria” e, por exemplo, o jornalista Jonathan Watts do The Guardian, que
apontou vários exemplos de quebras de regras por parte de grandes corporações
de carne brasileira. Como se tudo isto não bastasse, da queixa de cinco organizações
da sociedade civil resultou uma investigação da Provedora de Justiça Europeia
que concluiu que o acordo foi fechado antes de uma Avaliação de Impacto da
Sustentabilidade, algo que, segundo a provedora Emily O’Reilly, “pode
prejudicar os valores da UE”, podendo assim o acordo “trazer consequências
negativas”.
Mas esta não é a única questão extremamente preocupante. As políticas
de desflorestação e destruição desta floresta têm sido também um pretexto para
o ataque aos direitos, liberdades e garantias das populações indígenas da
região. Já foram várias as vezes que os governantes mostraram posições bastante
discriminatórias em relação aos índios – Bolsonaro, por exemplo, já tentou
tirar o poder de demarcar território indígena aos próprios para o entregar ao
seu Ministério da Agricultura – e já houve até registos de ataques
territoriais. Se este acordo for para a frente, poderá abrir a porta a mais
violência e repressão destas comunidades e até a um potencial genocídio, e será
uma passadeira vermelha estendida à agenda antidemocrática, ultranacionalista e
supremacista branca de Bolsonaro, e às violações do Estado de direito do seu
governo.
Em relação à Europa e aos europeus, este acordo também não
promete ser inteiramente vantajoso, para dizer o mínimo. A União poderá poupar
dinheiro para os seus próprios interesses, mas os agricultores e produtores de
gado europeus, sobretudo os pequenos agricultores, poderão ser os mais prejudicados,
tendo estes já manifestado o seu desagrado em países como França ou Irlanda, e
levando os mesmos países a manifestarem dúvidas sobre o acordo.
Este é mais um acordo que, a ser promulgado, não beneficia
em nada nem os europeus nem a cooperação entre todos os povos. É algo que tem
de ser repensado, tal como todo o projeto europeu recente – um projeto que visa
apenas o lucro e os interesses do grande capital e de grandes corporações em
detrimento do desenvolvimento, da igualdade, das condições de vida dos
trabalhadores europeus e da cooperação entre povos – dos quais acordos como
este são reflexo.